As
mentiras que os homens contam
(Luis Fernando
Veríssimo)
Nós nunca mentimos. Quando mentimos, é
para o bem de vocês. Verdade. Começa na infância, quando a gente diz para a mãe
que está sentindo uma coisa estranha, bem aqui, e não pode ir à aula sob pena
de morrer no caminho. Se fôssemos sinceros e disséssemos que não tínhamos feito
a lição de casa e por isso não podíamos enfrentar a professora a mãe teria uma
grande decepção. Assim, lhe dávamos a alegria de se preocupar conosco, que é a
coisa que mãe mais gosta, e a poupávamos de descobrir a nossa falta de caráter.
Melhor um doente do que um vagabundo. E se ela não acreditasse, e nos mandasse
ir à escola de qualquer jeito, ainda tínhamos um trunfo sentimental.
"Então vou ter que inventar uma história para a professora", querendo
dizer vou ter que mentir para outra mulher como se ela fosse você. "Está
bem, fica em casa estudando!" E ficávamos em casa, fazendo tudo menos
estudar, dando-lhe todas as razões para dizer que não nos aguentava mais, que é
outra coisa que mãe também adora. A primeira namorada. Mentíamos para preservar
nosso orgulho, certo?
- Não, não, eu estava passando por
acaso. Você acha que eu fico rondando a sua
casa o dia inteiro, é? Mas o que vocês
pensariam se nós disséssemos: "Sim, sim, não posso ficar longe de você,
penso em você o dia inteiro, aqueles telefonemas que você atende e ninguém
fala, sou eu! Confesso, sou eu! Vamos nos casar! Eu sei que eu só tenho 12 anos
e você tem 11, mas temos que nos casar! Senão eu morro. Senão eu morro!"?
Vocês se assustariam, claro. A paixão nessa idade pode ser um sumidouro.
Mentíamos para nos proteger do sumidouro. Outras namoradas. Outras mentiras.
- Eu só quero ver, juro. Não vou tocar.
Vocês não queriam ser tocadas, mas ao mesmo tempo se decepcionariam se a gente
nem tentasse. Nem desse a vocês a oportunidade de afastar a nossa mão,
indignadas. Ou de descobrir como era ser tocada.
Namorar - pelo menos no meu tempo, a Renascença
- era uma lenta conquista de territórios hostis, como a dos desbravadores do
Novo Mundo. Avançávamos no desconhecido, centímetro a centímetro, mentira a
mentira.
- Pode, mas só até aqui.
- Está bem. Não passo daí.
- Jura?
- Juro.
- Você passou! Você mentiu!
- Me distraí!
Dávamos a vocês todos os álibis, todas
as oportunidades para dizer depois que tudo acontecera devido à nossa
calhordice e não à vontade que vocês também sentiam. Não mentíamos para vocês,
mentíamos por vocês. Os verdadeiros cavalheiros eram os que enganavam as
mulheres. Os calhordas diziam, abjetamente, a verdade. Não faziam o que juravam
que não iam fazer, transferindo toda a iniciativa a vocês. É ou não é? Mas isso
tudo mudou, desgraçadamente bem quando eu deixei para trás as tentações do
mundo e entrei para uma ordem (a dos monógamos). A revolução sexual, que um dia
ainda vai ser comemorada como a Revolução Francesa, com a invenção da pílula
anticoncepcional correspondendo à queda da Bastilha e o fim dos sutiãs ao fim
da monarquia - e o termo sans culotte,
claro, adquirindo novo significado - tornou o relacionamento entre homens e
mulheres mais franco e desobrigou os homens de mentir para as mulheres para
salvar a honra delas. Aliás, dizem que a coisa virou de tal maneira que hoje a
mentira mais comum dita pelos homens é "Esta noite não, querida, estou com
dor de cabeça". Não sei. Mas continuamos mentindo a vocês para o bem de
vocês. "Rmmwlmnswl" não significa que nós estamos fingindo dormir com
medo de ir ver que barulho é aquele na sala. Significa que estamos fingindo
dormir para que você vá ver com seus próprios olhos que não é nada e pare com
esses temores ridículos, e se for mesmo ladrão nos avise a tempo de pular pela
janela. "Fiquei fazendo companhia ao Almeidinha, coitado, ele ainda não se
refez" significa que a nova gata do Almeidinha só saía com ele se ele
conseguisse um par para a prima dela, e nós fazemos tudo por um amigo, mas não
queremos estragar a ilusão de vocês de que a separação deixou o Almeidinha
arrasado, como ele merecia."Está quase igual ao da mamãe" significa
que não chega aos pés do que a mamãe fazia, ou então que está muito melhor, mas
que o importante é vocês não se sentirem nem tão ressentidas que decidam atirar
o doce na nossa cabeça e depois se arrependam, nem tão confiantes que parem de
tentar ser iguais à mamãe, e no dia que a gente disser que está sentindo uma
coisa estranha bem aqui, só para não ir trabalhar e ficar vendo o programa da
Xuxa, vocês não digam "Comigo essa não pega" e nos botem para a rua.
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