O
cego, Renoir, Van Gogh e o resto
(Ivan Ângelo)
Vistos de costas, pareciam apenas dois
amigos conversando diante do quadro Rosa e Azul, de Renoir, comentando o
quadro. Porém, quem prestasse atenção nos dois perceberia, e talvez
estranhasse, que um deles, o de elegantes óculos de sol, parecia um pouco desinteressado,
apesar de todo o empenho do outro, traduzido em gestos e eloquência quase
murmurada. O que dava ao de óculos a aparência de desatento era a cabeça, um
pouco baixa demais para quem estivesse olhando o quadro, cabeça que também não
estava de frente, mas um pouco virada para a direita com relação à pintura,
como se ele enfocasse outra coisa, a assinatura de Van Gogh no pé do quadro
vizinho, por exemplo.
O que falava segurava às vezes o
antebraço do de óculos com uma intimidade solícita e confiante. Como se fossem
amantes.
Aproximei-me do quadro, fingindo olhar
de perto a técnica do pintor, voltei-me e percebi: o de óculos escuros era
cego.
Cego! O que fazia um cego no Masp?
Ninguém parecia interessado neles; nem o guarda, treinado para olhar pessoas em
vez de quadros.
De perto, pude ouvir o que falava:
- ... os olhos dessa menina de rosa
brilham como se estivessem marejados, como se ela estivesse a ponto de chorar,
e a boca, de um rosa muito vivo, quase
vermelho, ajuda a dar essa impressão,
parece que se contrai. É muito mágico, não se pode ter certeza. Por cima do
corpinho do vestido ela usa uma espécie de colete
também de musselina rosa franzida,
adornada por uma espécie de babado de alto a baixo.
- Você já falou “espécie de” três vezes.
- Tá bom, vou evitar. Essa... esse
colete é preso na cintura por uma faixa bem larga de cetim cor-de-rosa, larga
mesmo, de quase um palmo, usada como cinto.
Ela tem o dedo polegar da mão direita
enfiado nessa espécie de, perdão, nessa faixa de cetim, o que parece um truque
do pintor para dar movimento ao braço
e graça infantil à figura da menina.
Algo extraordinário acontecia ali, que
eu só compreendia na superfície: um homem descrevendo para um amigo cego um
quadro de Renoir. Por que tantos detalhes?
- A saia rodada franzidinha é do mesmo
tecido cheio de luz. As meias são de uma tal transparência diáfana rosada que
mal se destacam das perninhas sadias
dela.
Vão até a metade da perna, e os sapatos
são pretos de alcinha com uma fivela, não, não é uma fivela, é um enfeite
dourado, um na alça e outro no peito
do pé, bem discretos. Ela dá a mão
esquerda para uma outra menina de vestido igualzinho ao dela, só que em azul,
bem brilhante, e ela tem os cabelos mais claros.
- Azul como quê? Fale mais desse azul -
pediu o cego, como se precisasse completar alguma coisa dentro de si.
- É um azul-claro, muito claro, um azul
que tem movimento e transparência e muita luz, um azul tremulando, azul como o
de uma piscina muito limpa eriçada
pelo vento, uma piscina em que o sol se
reflete e que tremula em mil pequenos reflexos...
Lembra-se daquela piscina em Amalfi?
- Lembro... lembro... - e sacudia a
cabeça, reforçando.
- É parecido. A menina de azul é um
pouquinho mais alta e está quase sorrindo... o contrário da outra. Parecem
irmãs, devem ser irmãs, mas ela tem os cabelos
mais claros, louros mesmo, e mais
compridos. A mão esquerda dela tem um movimento gracioso, como se ela segurasse
com o indicador e o polegar um raio de luz
do vestido brilhante...
Afastei-me, olhei-os de longe. Roupas
coloridas, esportivas. Depois de poucos minutos, passaram para outro quadro, de
Van Gogh. Pouco a pouco a compreensão
do que faziam ali me inundou, e fechei
os olhos para ver melhor. O guarda treinado para vigiar pessoas estava ao meu
lado e contou, aos arrancos:
- Eles vêm muito aqui. Só conversam
sobre um quadro ou dois de cada vez. É que o cego se cansa. Era fotógrafo,
ficou assim de desastre. É cego mas é rico.
Disse rico como se fosse uma compensação
justa. O mistério da alma humana não o inquietava, aquela necessidade de ver,
dentro do não ver. A construção
de um quadro na mente de alguém por meio
de palavras. Não o tocava a dedicação do narrador de quadros - seria amor? -, o
seu esforço amoroso de fazer as palavras brilharem como tinta, concretas.
Saí, passei por eles, ocupados em pintar
O Filho do Carteiro, de Van Gogh:
- ... um amarrotado boné de carteiro,
azul-marinho com debruns dourados na pala e na copa, e tem olhos azuis muito
abertos, como que assustado...